domingo, 10 de dezembro de 2017

A cidade dos buracos

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Não precisa pesquisar nenhum estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para chegar à conclusão de que uma das obras que mais crescem em nossos dias em Campo Grande são os buracos (também conhecidos como batocos, boçorocas, covas, depressões, escavações, grotas, sorocas, sorocabuçus —tem um bocado de sinônimos) nas ruas da cidade.

É quase inacreditável, mas em Morenópolis há um buraco a cada 23 metros de rua. Segundo altos mandatários municipais, Campo Grande tem mais de 280 mil buracos neste dezembro de 2017 —deu em noticiários de redes nacionais de televisão não faz muitos dias. E estes números continuam em célere crescimento, apesar das promessas do prefeito morenopolitano de plantão Marquinhos Trad, que já há um ano é o gestor da cidade, levantando a suspeita de que no futuro haverá um território urbano dividido em apenas dois gêneros de espaços: os com buracos e os remendados (não há a perspectiva de haver territórios sem buracos).

Num passado não muito distante ainda era possível trafegar tranquilamente em qualquer rua, sem ter de praticar slalom (percurso sinuoso entre obstáculos, ou seja, zigue-zague). As ruas pertenciam ao cidadão. Agora pertencem aos fazedores, consertadores, tapadores e outros especialistas em buracos. Hoje é impossível os condutores dos mais diversos tipos de veículos (motos, automóveis, caminhões, carrinhos de pipoca, bicicletas, velocípedes etc.) trafegarem pelas vias públicas sem ter de desviar-se ou cair nas covas que matam molas, amortecedores e outras partes dos semoventes e, infelizmente, pessoas do gênero humano.

Depois de anos de estudos, concluiu-se que o buraco —como centenas de outros tipos de mobiliário urbano(?)— também é uma consequência do progresso, embora alguns historiadores afirmem que o fenômeno seja mais antigo, tendo surgido quando o homem das cavernas teve de sepultar o primeiro parente morto. Em Campo Grande cai uma lágrima de chuva e faz logo um furo no chão. Passa um Corolla, uma Brasília amarela, a picape de um botinudo desabotinado —entra e salta, bate e alarga. E surge a primeira utilidade do buraco, que é o de sítio de despejo. E ali se podem despejar muitas águas: a suja, a de sabão, do banho do rebento, a das sobras das comidas e até, de outras sobras que são um tanto, digamos, escatológicas.

E cheira mal? E como cheira. É o cheiro da presença do pior dos seres criados pela natureza —ou por Javé, a partir da sua divina imperfeição. Os buracos se ampliam e aumentam de número. Agora já não é mais um buraco sozinho ou vazio —tem lama. Lama de todas as cores (que o buraco não é racista): tem a branca de areia, vermelha de barro tijolento e a escurinha, que é da mesma cor dos dejetos. Passarão os dias e será uma lagoa cheia de muitos outros viventes: baratas, moscas, mosquitos, limos, águas fétidas onde nadam pererecas e cobras d’água.

E cuidado! Não despeje sal na água dos buracos. Se fica salgada você pode ter no tal buraco bichos como baleia, arraia (até arraia miúda) e tubarão, entre outros. É um perigo para a criançada que toma banho e não sabe que pode morrer de morte comida. Tubarão é bicho que mata quando é peixe, e come tudo da gente se é pessoa. Mas, ao contrário do que se diz, a água do buraco não está ali só pra provocar doenças e quebrar carros —também educa. O buraco da rua é, verdadeiramente, uma escola do ócio e do lazer. Ali aprendem as crianças a arte de pescar, de navegar e de nadar. Ali aprendem os meninos a defender a sua propriedade, enxotando e vituperando os rivais. Conhecem a lei: no buraco das pescas só pesca o próprio dono do peixe.

É também óbvio que os buracos têm uma vigorosa vertente ideológica. São buracos democráticos —todos, sem qualquer discriminação, podem cair com seus veículos, enche-los de lixo ou destroncar os tornozelos. São para todos, o banho das crianças e as retretes dos adultos apertados. Ainda mais: fornecem água gratuita para quem quer lavar a roupa. Cheiram mal para toda a gente. Não escolhem nariz, nem posição social. Quem passa, cheira. Quem não cheira, é porque não passou —ou perdeu o olfato. Dividem por todos as doenças típicas dos buracos, tais como zica, dengue, chicungunia e outras, que matam a todos sem discriminação. Só não podem matar político, porque político não usa as ruas esburacadas (portanto, não caem em buracos) e filho de político estuda fora.

Todos sabem que os buracos fazem parte do patrimônio da cidade. Patrimônios histórico e turístico —e econômicos, porque proporcionam trabalho e lucros pra, mecânicos, borracheiros, empreiteiros, furadores etc., além de corruptos em geral. Dizem até que o prefeito está pensando em criar a Secretaria do Planejamento, Perfuração e Conservação do Buraco (Seplaperconbu), exatamente pra administrar as vantagens de ter buracos nas ruas da cidade —e lembrando que, a cada vez que se tapa um buraco, perde-se uma história.

Porém, os motoristas de toda a cidade têm enorme ojeriza ao buraco. A resistência do condutor, do ponto-de-vista psicológico, é compreensível. Vive tão atolado em dívidas e impostos que ainda não se acostumou a ter que pagar para ter ruas esburacadas e perigosas. Teófila Putifunda, moradora da Chácara dos Poderes, faz sua queixa: "caindo em no mínimo sete buracos todos os dias, o mínimo que se ganha são sustos, pneus desinflados, amortecedores destroçados etc. Quanto é que isso dá no fim do mês?" Uma fortuna, diz ela. Teófila conta que tinha um Corcel 77, mas na quarta prestação foi obrigada a vendê-lo a um ferro-velho. Não podia pagar os consertos do automóvel.

O problema, por conseguinte, também atinge as indústrias de automóveis, que procuram tomar suas providências para não reduzirem a produção e perderem as vendas. E em neste 2017 é muito provável que os carros já venham equipados com mini-usinas de asfalto, pás, enxadas, retroescavadeiras, rolos-compressores etc. Talvez não resolva o problema, mas vai fazer crescer a indústria e o comércio de maquinário rodoviário do município.

Quando candidato, ainda em 2016, o prefeito de plantão Marquinhos Trad prometeu exterminar todos os buracos da cidade em curtíssimo prazo. O doutor Trad seria o Exterminador de Buracos Monepolitano, o Janot das covas de ruas, becos e vielas. Trad bem que tenta, mas o serviço é tão malfeito que quando um buraco é fechado num dia, logo ressurge no dia seguinte —e já faz um ano que o doutor Trad vem tentando, sem êxito, porém. É como se os buracos sentissem saudades de seus lugares nas vias públicas e voltassem sempre. E com muitos irmãozinhos, filhinhos e outros aparentados. E o Trad Exterminador de Buracos continua sendo um desastre.


Luca Maribondo
Nostromo |Campo Grande | MS | Brasil

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