sábado, 26 de agosto de 2017

Testemunha ocular da história

 ¬Em 1811, dois médicos portugueses, Vicente Pedro Nolasco da Cunha e Bernardo José de Abrantes e Castro, lançaram em Londres, a mando e sob a proteção dos representantes lusos, o Investigador Português, que começou a circular em julho daquele ano, recebendo aqueles "jornalistas" uma pensão para mantê-lo. Era o início daquilo que o general e historiador Nelson Werneck Sodré chamou, em seu livro História da Imprensa no Brasil, de imprensa áulica.
Daí surge uma pergunta óbvia: que vem a ser um áulico? O jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Eugênio Bucci tem uma resposta: "a palavra vem de outras paragens. Com origens que remontam ao grego (aulikós), passando pelo latim (aulicus), ela ressurgiu no século XVI com o sentido de 'cortesão', de 'palaciano'. Hoje, designa aquele que enaltece e glorifica o poderoso. Se o poderoso em questão se encontra instalado no Estado ou aboletado no comando das legiões oposicionistas, é o de menos. Qualquer poderoso, esteja onde estiver, nutre estima por seus áulicos, aqueles amigos solícitos que riem de suas piadas, acendem seus cigarros e, quando conseguem atrair um microfone, elogiam os dotes visionários do chefe".
Diz ainda Bucci que, "para ser um áulico, o sujeito não pode querer pensar muito, pois, se muito pensar, sua lealdade ao chefe deixará de ser assim tão constante, tão canina. Não obstante, eis que começam a pipocar áulicos que se emprestam ares de intelectuais independentes".









Naquela época, depois do Investigador Português, surgiram no Brasil, como é do conhecimento de todos, inúmeros jornais ligados ao poder, que configuraram a tal da imprensa áulica, cortesã, puxa-saco. E é instigante, para reflexões de todos, saber que a palavra aula tem a mesma raiz de áulica. Bom saber que aula, em português antigo, significava também corte, palácio. E a imprensa áulica existe até hoje em todo o Brasil —regiamente remunerada, tanto pessoa jurídica, como pessoa física, pra agir como aduladora dos poderosos.
Há alguns dias houve um exemplo claro da postura áulica de boa parte da mídia em Campo Grande. Depois de mais de dois anos da divulgação do nome da empresa vencedora da licitação para reformulação da encruzilhada das avenidas Prof. Luís Alexandre de Oliveira, Nelly Martins (Via Parque) e Mato Grosso, finalmente a Prefeitura da cidade entregou a obra concluída, com uma festa de inauguração promovida pelo prefeito Marquinhos Trad com a cumplicidade do governador Reinaldo Azambuja.
E ai de quem ousasse invectivar o prefeitinho Marcos Trad. Receberia logo um passa-fora deseducado. Eu mesmo recebi uma repreensão porque escrevi numa mídia social a seguinte frase criticando o caos na saúde publica municipal: usando um linguajar pra lá de tatibitate, o prefeito Marquinhos Trad finalmente foi a público explicar a lambança na saúde pública na Morenópolis; e argumentou também a respeito das desavenças com a Santa Casa, maior hospital do Estado. Falou ao vivo para a TV Morena, mas não explicou realmente nada. E, como diria a famigerada Zulmira (tia do cronista Stanislaw Ponte Preta), "quando a desculpa é gaguejada é porque a explicação está errada". Um de seus jornalistas de algibeira logo respondeu: "quanta bobagem"! —isso sem qualquer argumentação lógica.
A um custo de 1,6 milhão de reais, cuja maior parte saiu dos cofres do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul. Mas foi o prefeito Marquinhos Trad que comemorou salientando que “estamos inaugurando aquilo que era um problema para todos os motoristas que usavam essas vias. São mais de 35 mil veículos que transitam pelas avenidas Mato Grosso e Nelly Martins, tanto no sentido centro, quanto no sentido Parque dos Poderes e toda a Região Norte da nossa cidade. Um serviço econômico, de alta resolutividade (sic) e que vai atender aos anseios de todos aqueles que aqui passam”, segundo nota da assessoria de Comunicação da Prefeitura.
Assim, na quarta-feira, 16 de agosto/17 a obra da mencionada rotatória das avenidas Mato Grosso, Prof. Luís Alexandre de Oliveira e Nelly Martins foi inaugurada com pompa e circunstância. Festa pra inaugurar reforma de rotatória e instalação de semáforos luminosos é um disparate. Entretanto, não se leu na mídia local nenhuma crítica nem dos veículos de comunicação, nem dos jornalistas, numa demonstração do aulicismo mais contumaz.
Outro exemplo do aulicismo dos comunicadores campo-grandenses é o aniversário da cidade. Nos textos jornalísticos e no material publicitário difundidos para comemorar a data neste ano de 2017 a gente é informada de que Campo Grande está festejando 118 anos, o que não é verdade, mesmo porque José Antônio Pereira e seus companheiros, fundadores da cidade, aqui chegaram em junho de 1872, há 145 anos, portanto.
Em agosto de 1972, o então prefeito Antônio Mendes Canale, promoveu uma grande festança pra comemorar o primeiro centenário daquela que viria a ser a capital de Mato Grosso do Sul. Depois, em agosto de 1999, o então prefeito André Puccinelli comemorou novamente o primeiro centenário da cidade, nesta época já ungida capital do MS. Parece piada, mas não é: num período de 27 anos, Campo Grande (e os campo-grandenses ignorantes a reboque) festejou duas vezes os seus primeiros cem anos.
Você, leitor, já leu algum material jornalístico analisando essa falta de respeito com a história da cidade? Não, né? Nem eu. Em 1999, o dr. Puccinelli, muito festeiro, distribuiu dinheiro a rodo pra comemorar o primeiro centenário da cidade e ninguém escreveu uma linha pra criticar o senhor prefeito de então. Mas que importância tem a história? Para o campo-grandense aparentemente nenhuma.
Só que não é bem assim. Como escreveu o historiador Eric Hobsbawm, "o passado continua a ser a ferramenta analítica mais útil para lidar com mudança constante (...)". A evolução política e social de todas as sociedades somente se configura através do estudo das relações entre passado, presente e futuro, e isso somente se espelha na amplitude e importância do conhecimento da história de um povo. O jornalista é uma espécie de testemunha ocular da história, porém seu testemunho só é válido se ele agir por conta própria, sem a remuneração de um amo e senhor.
¬Luca Maribondo | lucamaribondo@uol.com.br | Campo Grande | MS

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