quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

_A trilha sonora do inferno

>>>
Tenho comigo que o morenopolitano tem uma especial predileção por passear em supermercados. Há quem goste. Há quem odeie. Ir ao supermercado é um suplício para alguns, um deleite pra outros. Mas esse programa (de índio?!) está na rotina de todos —famílias e indivíduos sem família. O tormento da ida ao supermercado começa na chegada, na hora de estacionar no pátio da loja. Este, sempre está lotado, notadamente nos fins de semana, nos fins de tarde (tem gente que vai ao mercado só pra comprar pão), nas madrugadas, enfim, em qualquer dia e horário.

Assim que logra estacionar, depois de xingar a dama do Honda Fit vermelho que ocupa duas vagas, o freguês vê aquele carrinho de compras dando sopa próximo à entrada. "Baita sorte", pensa. E aí começa o martírio. Dois metros e meio depois, ele descobre o porquê de tanta sorte: o carrinho tem vontade própria, insiste em ir para o lado oposto do que o condutor deseja; empaca feito mula teimosa. O condutor abandona-o em frente à gôndola de inseticidas e sai desesperado em busca de outro.

Empurrar carrinho de compras parece ser um esporte para um número incontável de pessoas: o freguês-atleta corre por todas as seções do supermercado; no percurso topa (inclusive no sentido de abalroar) com crianças à solta, moças de patins, locutores, mocinhas de vida airada, outros competidores desprovidos de coordenação motora guiando seus carrinhos alucinados. Muitos, ao cruzarem a linha de chegada, isto é, a frente de caixas, estão extenuados.

Mas fria é ir ao supermercado com fome. A listinha que você fez com carinho vai para a cucuia... Junto com a grana, obviamente. Mas dependendo do mercado dá até para fazer uma boquinha: não, não sugiro que você se esconda das câmeras de vigilância e viole as embalagens dos produtos! Apele para as degustações de suco, sopa em pó, pamonha etc.... E economize seu numerário.

Dias desses, na área de frutas e verduras, uma jovem dama começou a flertar, de longe, com um cavalheiro atraente. Entretanto, quando ele começou a apalpar os rijos pepinos de modo extremamente delicado, ela deduziu que ele não seria um amante adequado. Seguiu seu caminho ao som da horrenda trilha sonora supermercado, enfiando no carrinho uma série de itens sem prestar atenção. "Moça, a senhora está pondo suas coisas no meu carrinho!" —disse uma velhinha enfurecida com a troca.

Por falar em trilha sonora, este é um item importante em qualquer compra de supermercado. Da última vez que fui a uma dessas lojas de self service, na hora de pagar a pergunta da garota do caixa foi a de sempre; minha dor de cabeça ocasionada pela "música" provocou uma resposta indignada. "Algum produto que o senhor não encontrou em nossa loja?", perguntou ela. "Uma música ambiente que não seja pagode!" —respondi, cansado de quase duas horas de suplício com pagode e sertanojo.

Algumas pessoas são alérgicas a camarão, a licor de cacau, a leite integral. Eu sou alérgico a música sertaneja e pagode. A previsibilidade dos versos e a monotonia mecânica do ritmo me dão a sensação de estar lendo Poe num ponto de ônibus. Nada contra os que apreciam os gêneros. É apenas alergia.

Como nós, a música tem tres planos. Melodia, ritmo e letra levam estímulos a alma, espírito e corpo. O ritmo faz bater o pé e gingar, a melodia retine a alma para emocionar, mas é a poesia que fala ao mais íntimo do ser, aquilo que nos distingue dos irracionais. Animais batucam os cascos ritmados, árvores dançam com os galhos cadenciados, ventos assoviam melancólicos, mas só os seres humanos são capazes de cantar palavras, privilégio que, penso eu, só os anjos podem desfrutar além de nós. Enquanto você analisa qualidade musical segundo o peso que os diferentes estímulos têm —dos mais primitivos aos mais elevados— para corpo, alma e espírito, volto à música no supermercado.

A música deve (ou deveria) ajudar a criar a atmosfera de compra —a estimular o cliente a permanecer no ambiente e a comprar sempre mais. Se for lenta, ele fica mais tempo e compra mais. Se for rápida e intencional, vai agilizar o processo para dar lugar a outros e evitar aglomerações. Restaurantes inteligentes fazem isso para desocupar mesas. Naquele supermercado não havia tanta inteligência assim.

Todo gerente deveria ver na loja o seu palco, nas instalações o cenário, no som ambiente a orquestra e nos funcionários os atores de uma peça teatral. Tudo com a finalidade de conduzir o público. Leiaute, móveis, iluminação, cores, sons e até aromas são vendedores invisíveis e irresistíveis, agindo em nossa mente para transformar a compra numa experiência de quero mais.

Em um supermercado, quase 60% das decisões de compra dos fregueses são tomadas no ambiente, daí a responsabilidade que sua atmosfera tem de sussurrar os estímulos corretos na mente do comprador, estimulando-o a comprar e até ajudando na decisão. Não era o que o pagodeiro estava fazendo. Após sofrer aquele som destilado pelos alto-falantes derramando palavras chulas ou versos açucarados, decidi encerrar minhas compras com uma breve parada na seção de cerveja.

Atualmente, a utilização da música no ambiente de trabalho se enquadra dentro do que se denomina música funcional, ou seja, toda música que possui objetivos ou aplicações extramusicais, como trilhas sonoras para filmes, jingles ou música ambiente apresentada em restaurantes, supermercados, consultórios médicos e fábricas etc. Essa utilização baseia-se nos efeitos psico-fisiológicos causados no ser humano pelo fenômeno musical. Alguns desses efeitos são o aumento do metabolismo; alteração da atividade muscular, freqüência respiratória, fluxo sanguíneo e pressão arterial; redução do impacto dos estímulos sensoriais; podendo retardar a fadiga, estimular a concentração e modificar a condutibilidade elétrica do corpo. Mas os responsáveis pela música do supermercado parecem não ter a menor idéia de como se faz uso desses efeitos.

Ouvi o pagodeiro cantar de coxas torneadas, barrigas saradas, bundas carnudas, coisas assim. Tentei conferir, mas minha barriga não permitia que eu visse minhas coxas. Decidi escolher pelo preço, mas o pagodeiro cantou que a coisa mais feia é gente que chora de barriga cheia. Na hora de decidir pela marca, ele me mandou vadiar, agressivo. Melhor esquecer. Pagodeiro nenhum iria me ajudar a escolher. Fui para a seção de vinhos.

Mas voltemos às compras. Ou melhor, ao fim do tour pelo supermercado. Quando finalmente você começa a botar na esteira as suas compras, a mocinha avisa: "vou estar trocando a bobina da caixa registradora. Aguarde, por favor!" Vem a moça dos patins, demora mais um pouco. E mal sua compra rola na esteira, você se dá conta que o cliente atrás de você, que já deu aquela cutucada no seu com o carrinho, foi jogando as coisas dele na esteira também. Misturou tudo!

A fila dos caixas é um ponto de tensão. Tem sempre alguém que estaciona o carrinho na fila com alguns produtos para marcar o lugar, mas continua a fazer suas compras. Assim, é comum ver carrinhos sem condutor a disputar os melhores lugares da fila. Dias atrás, na fila em que eu estava, um forasteiro se revoltou. Em sua fala arrevesada dizia impropérios para a dona de um carrinho desses que tomou a sua frente. A mulher "esperta" —coisa da ética de brasileiro— fingia nada entender.

Depois de tudo ensacado e guardado no portamalas do carro, a volta pra casa e o pensamento na mula que é guardar todas aqueles pacotes. Isso, não sem um breve entrevero com o cara que correu pelo estacionamento como se estivesse em Jerez la Frontera.

Mas já deu pra você, leitor, julgar que considero o ato de fazer compras em supermercado extremamente desgastante. Dirigir toda semana, entre gôndolas e seções, um carrinho de mão tentando driblar os demais fregueses, não é um das minhas atividades preferidas. Por isso, nessas ocasiões converso o mínimo; poupo as palavras. No máximo alguns acenos de cabeça, uma saudação aqui, um aperto de mão ali, até o triunfante momento de passar pelo caixa.

Tento aproveitar esse momento pra pensar. Penso em quase tudo. Penso no trabalho. Faço uma reflexão sobre a política. Reflito sobre o que hei de escrever. Observo as pessoas que fazem suas compras: a senhora que escolhe a marca do papel higiênico (hoje existe mil variedades, até perfumados e coloridos), o rapaz que degusta o suco de clementina enquanto espera a namorada se decidir por qual marca de pipoca comprar, a criança que chora copiosamente aos pés da mãe implorando por um picolé de limão, a mocinha de sainha curta que fuça o frízer de peixe com cara de nojo.

Quando criança, supermercado costumava ser um dos meus passeios favoritos —na verdade eu era bem criança quando meu pai gerenciava uma rede de supermercados. Eu via aquela enorme variedade de guloseimas e tinha vontade de colocar tudo para dentro do carrinho —em casa poderia experimentar novidade por novidade e depois fazer anotações. Como criança não manda(va) em nada, a única coisa que eu podia fazer era pedir vários iogurtes e doces diferentes, torcendo para que me comprassem ao menos um Diamante Negro —que eu comia ali mesmo na fila do caixa. Nunca entendia como o paraíso acabava tão rápido. Mas hoje o paraíso tornou-se o inferno. E um inferno com trilha sonora ignominiosa.

Nenhum comentário: