domingo, 27 de dezembro de 2009

||Desatendimento ao cliente

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É uma surpreendente característica humana a de ser capaz de entrar e sair de estados de idiotia várias vezes por dia, sem notar a mudança nem matar acidentalmente espectadores inocentes. Isso me faz pensar numa pergunta transcendental, que certamente irá reacender um debate que parece adormecido, ao menos para o grande público: os serviços de atendimento ao cliente —também chamados de callcenters (assim mesmo, em inglês)— das empresas são inteligentes? Os callcenters podem pensar? Poderão algum dia?

Quanto à primeira pergunta —se os callcenters são inteligentes—, a resposta depende, antes de mais nada, do que se define como inteligência, e das distinções entre o artigo genuíno e algo que poderíamos chamar de "ação inteligente". Por exemplo: aranhas tecem teias, joões-de-barro fazem casas com lama e gravetos, e gatos caçam ratos. Cada um desses comportamentos poderia, por si só, ser considerado um "ato inteligente", uma vez que, aparentemente, todos envolvem algum tipo de planejamento e conhecimento técnico.

Mas sabemos que esses animais não possuem inteligência real —ou melhor, nada parecido com a inteligência humana. Suas supostas "ações inteligentes" são fruto da evolução natural, consolidada na programação genética da espécie. A caçada dos gatos, por exemplo, segue o mesmo esquema tático há milhares de anos. Se os ratos fossem um pouco mais espertos, eles não cairiam mais nessa.

E os serviços de atendimento ao cliente? Mesmo antes dos sistemas computadorizados, da telefonia eletrônica, dos 0800 e 0300 da vida, a "inteligência" dos callcenters já era popular no mundo empresarial, com as companhias se agindo de boazinhas em seus anúncios, e fazendo de tudo para ferrar o freguês do outro lado dos fios. Com a modernização desses sistemas, o atendimento piorou muito.

Agora, você, cliente, liga para um callcenter qualquer da vida e de cara ouve uma voz gravada —ou será um robô falante?— dizendo algo assim: "se você quer ser atendido por um de nossos consultores, tecle um. Se você não deseja ser atendido, deslique o telefone. Se você entuba uma marmota, tecle dois-quatro. Se você quer fazer telessexo oral e simultâneo tecle meia-nove"... E por aí vai.

Toda vez que sou obrigado a ligar para um desses serviços de atendimento ao cliente fico lucubrando se há algum tipo de inteligência entre as pessoas que os planejam, chefiam e executam. Um dos problemas no estudo do fenômeno inteligência é que só conhecemos um exemplo —nós mesmos. Cientificamente, é difícil definir um objeto de estudo quando só se tem um exemplo. É como se todos os gatos do mundo fossem brancos: ao encontrar um gato preto, os cientistas não percebam que trata da mesma espécie. Da mesma maneira, corremos o risco de esbarrar numa inteligência não humana e sermos incapazes de reconhecê-la. O que não justifica o funcionamento dos callcenters.

Apesar disso, uma tentativa de definir a inteligência humana de forma global —isto é, com critérios que poderiam valer tanto para seres humanos quanto para marcianos, selenitas ou funcionários dos serviços de atendimento ao cliente— inclui os seguintes pontos: capacidade de comunicar-se; criatividade; capacidade de aprender; comportamento orientado ao objetivo; consciência de si mesmo. Cada um desses critérios é necessário para ser declarada inteligente, uma criatura qualquer deverá possuir todos eles.

Até o momento, tal como os computadores e os robôs, os empregados dos serviços de atendimento ao cliente das empresas podem comunicar-se, podem ser programados (sim programados) para ter comportamento orientado ao objetivo, são capazes de simular uma certa criatividade (dizem que existem até frases completas, como verbo e tudo, ditas por essas pessoas que falam ao telefone com voz de robô) e a tecnologia das redes neurais parece estar desenvolvendo atendentes dos callcenters dotados de uma limitada capacidade de aprendizado. Só falta, então, juntar isso tudo numa mesma tecnologia consistente e —algo de que nenhum funcionário de serviço de atendimento ao cliente ainda chegou perto— dotar o sistema de autoconsciência.

Nesse dia, talvez a mocinha com voz de boneca Barbie ou o rapaz com sotaque de carioca que atende o gentil leitor nas companhias telefônicas, nas empresas de energia elétrica, no governo, no departamento de assinatura do jornal ou outra instituição qualquer que seja obrigada a ter uma relação com o cidadão comum, repita a frase de Descartes —"Penso, logo existo"— ou, mais assustador ainda, o versículo que narra o momento em que Javé, o Todo Poderoso, se identificou para Moisés: "Eu Sou Aquele que É" (Ex. 3, 14).

Criados pelos Departamentos de Marketing das empresas, os serviços de atendimento ao cliente existem para justificar todas as besteiras criadas pelos marketeiros... das empresas. O Departamento de Marketing usa muitas técnicas avançadas para produtos e vendedores de forma a maximizar os lucros dos seus empregadores. Por exemplo, eles dão réguas ou canetas ou agendas de presente. Os conceitos do marketing estão aí para qualquer um comprovar.

Por exemplo: todo consumidor deseja comprar o melhor produto pelo preço mais baixo. Felizmente (para eles), a maioria não sabe distinguir o conteúdo de uma garrafa de champanhe Cristal do conteúdo de uma garrafa de sidra Cereser. Não importa o quanto o produto seja desagradável, sempre existirá alguém que não sabe a diferença ou não tem acesso ao melhor. A função do marketing é identificar estes segmentos, enfiar um aspirador de pó dentro dos seus bolsos e sugar até que só reste fiapos de tecido. E aos serviços de atendimento ao cliente cabe esconder aspirador sempre que o consumidor o nota.

Por isso, é proibido o uso da inteligência nos callcenters, tal como nos computadores. Elas, as empresas que nos tratam feito idiotas, parecem estar dizendo para nós outros que a vida é complicada demais para a gente ser inteligente o tempo todo. A nós, quando maltratados pelos serviços de atendimento ao cliente, só resta fazer como nos computadores, puxando o fio da tomada quando nos incomodam, e bater o telefone e ficar lamentando ter entrado em mais um conto do vigário. Se você quer ver nossa empresa ir para o brejo, tecle rapidinho 2934708547118932147458039487530459...

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