sexta-feira, 27 de novembro de 2009

¬¬¬Aquilo que excita os moralistas

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Afinal, qual é a diferença entre erotismo e pornografia nas artes (visuais, literatura etc.)? Etimologicamente, as palavras nada têm a ver uma com a outra, mas é comum hoje em dia taxar de erótica uma pornografia, digamos, mais light. Umberto Eco, semiólogo, escritor e estudioso de literatura italiano, supõe haver encontrado o critério ideal para diferenciar-se um filme, uma peça de teatro, ou um programa de tv é pornográfico ou erótico.

Diz Eco que o critério é o de avaliar a demora, ou seja, julgar-se na obra os acontecimentos ocorridos na história ocorrem no tempo real. Por que ele propõe esse critério? Porque, segundo ele, no filme pornográfico, acontecimentos banais ou prosaicos do cotidiano (lavar as mãos, passar roupa, conduzir um carro) preenchem a ausência de elementos significativos na trama que, aliás, quase nunca interessam ao espectador, e aliviam o excesso de cenas lascivas obrigatórias no gênero, enquanto que as cenas e seqüências duram quase que o tempo normal utilizado por duas pessoas na realidade —às vezes o tempo é até esticado. O enredo não interessa, o sexo sim. Daí a demora.

Erotismo, na ficção, na História e na vida, é aquilo que exalta os sentidos, prepara a entrega ao prazer. Já a definição de pornografia tem variado com o contexto histórico, cultural e político. A mesma coisa para a aceitação do erotismo na ficção ou na poesia. Variam as reações conforme a época. Considerando que em nossos tempos, de medo da aids ou outras doenças sexualmente transmitidas, a exposição de corpos nus ou seminus e poses sugestivas são lugar comum, é mais difícil ainda precisar o que é erótico, o que é pornográfico.

Na ficção de uma maneira geral —romances, contos, poesia etc.—, o autor pode gastar três linhas para descrever uma seqüência de acontecimentos ou um período de dez anos. E o sexo, na literatura? O espaço ocupado em descrevê-lo também serve para definir se uma obra é pornográfica ou não?

Vejamos a obra de um autor brasileiro, grande sucesso de público recentemente, “A Casa dos Budas Ditosos”, do baiano João Ubaldo Ribeiro. As narrativas das ações sexuais dos personagens não correspondem ao tempo real, mas são detalhadas, abundantes. O mesmo acontece com um livro citado pela narradora e protagonista do livro de Ribeiro, “A História de O", da francesa Pauline Reage.

Ambos são romances de falsas memórias de mulheres. Há, entretanto, duas diferenças grandes entre eles: o francês é escrito sob pseudônimo, o brasileiro é assumido pelo consagrado escritor e acadêmico. O principal, no entanto, é que a história que a mulher narra no livro brasileiro são memórias libertárias. Poderiam ser resumidas ao seguinte argumento: o direito inalienável do ser humano ao gozo absoluto, com quem, onde e quando bem entender, independente de qualquer limite social ou cultural. Liberado, inclusive, o incesto.

Já no livro francês, as memórias são sobre o quanto uma mulher se deixa submeter sexualmente por amor ao seu homem e o quanto de prazer consegue obter nessa via crucis de, submissão, flagelação e promiscuidade. Ela pertence a todos os homens que o homem dela deseja que seja e de todas as formas que esses homens quiserem, porque assim ela realiza o ideal dele de amor absoluto. E o seu de submissão abjeta.

Em última análise, o sexo detalhado nas duas obras está, portanto, a serviço de questões éticas da maior relevância. É uma escolha estética dos dois autores colocar como uma mulher seduz as pessoas (homens e mulheres) para o seu prazer ou como se deixa flagelar por elas (homens e mulheres) para o prazer deles. O texto ser sexualmente excitante para alguns leitores ou sexualmente escandaloso para outros, é apenas uma intensificação do efeito.

Sempre existe espaço para o leitor examinar a vida e a cama das protagonistas e, quem sabe, mergulhar no interior de si mesmo. Com sorte, dá até para avaliar, ao fim e ao cabo, o próprio erotismo. Apenas é preciso ter uma visão mais aberta sobre a questão, caso contrário caímos no velho mote de que pornografia é tudo aquilo que excita os moralistas, ou falsos moralistas.

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